quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Entrevista: José Padilha - por Flávia Mattar (Ibase)


O filme "Tropa de elite", lançado durante o Festival do Rio, tem suscitado debates na sociedade. O diretor José Padilha fala sobre as manifestações difundidas nos meios de comunicação a respeito de sua obra, sobre violência policial, sobre os prejuízos da pirataria e diz que ainda é cedo para medir de que forma a platéia está reagindo ao filme. "Se daqui a três meses a platéia manifestar identificação com o Bope, vou ficar preocupado. Vou achar que o filme está medindo alguma coisa ruim na nossa sociedade."

Ibase - Por que fazer "Tropa de elite"?

José Padilha - Tinha feito o "Ônibus 174". Quis reconstruir o seqüestro do ponto de vista do seqüestrador, o Sandro Rosa do Nascimento. A idéia era mostrar que a violência com a qual agia surgia do histórico e das relações que teve com a sociedade, no caso com o Estado, ao longo da sua infância. A história do capitão Nascimento é a mesma coisa, só que ao contrário: "como surge o ponto de vista de um policial violento? Como sua visão da sociedade se constitui, justificando a sua violência?". Chamei os dois personagens pelo mesmo sobrenome: Sandro Nascimento e Roberto Nascimento. Os dois são, para mim, dois lados da mesma moeda.

Ibase - O filme está suscitando debates nos meios de comunicação. Como vê as manifestações?

José Padilha - Há debates importantes e outros sem importância alguma. No campo dos debates importantes, vejo a discussão séria a respeito da violência urbana, da corrupção policial, dos motivos pelos quais policiais se corrompem, matam etc. Esse debate me anima muito, foi o motivo pelo qual fiz o filme. Fortalece o debate que se originou, no caso específico da minha obra, com o "Ônibus 174". Existe um outro debate que é pela classificação do filme: esse é um filme de esquerda, esse é um filme de direita. Uma tentativa primária de ver o mundo a partir de categorias distantes que simplificam tudo, moralismo político.

Ibase - O que pretendia com as cenas de tortura que o filme mostrou?

José Padilha - A tortura é tão hedionda e bárbara que a sua simples exposição já constitui uma crítica. Quando optamos por mostrar a tortura, mostrar que uma pessoa normal, com juízo médio do senso comum, como o personagem Nascimento, é capaz de embarcar na tortura, tentamos fazer as pessoas pensarem exatamente sobre isso. Quais condições sociais são essas? Quais processos impulsionam a enorme violência que existe no Rio de Janeiro? Este ano e ano passado, 4.239 pessoas foram mortas por policiais militares, das quais um grande número tem características de execução: tiro na cabeça, de cima para baixo. É estarrecedor e muito grave. Tortura policial no Rio de Janeiro é algo comum e é denunciado diariamente em qualquer comunidade, o filme apenas colocou em evidência. O Brasil é um país que institucionalizou a tortura, o Estado brasileiro sancionou a tortura e isso é um fato.

Ibase - O que você (cidadão Padilha) acha que deveria ser feito para reverter a atuação violenta da polícia?

José Padilha - Temos que entender que a violência policial não nasce do nada. Ela não vem do vazio. Se você pensar que o policial no Rio de Janeiro ganha entre R$ 700 e R$ 1.000 por mês, é mal-treinado, não tem equipamento razoável e é pressionado pela sociedade: "vai ali e sobe aquela favela e troca tiros com aqueles caras de granada e metralhadora"... A remuneração não condiz com o que a sociedade pede para ele. O xeque-mate que damos em nossos policiais tem tudo a ver com a corrupção e a violência deles. Então, a primeira coisa é reformar a polícia. Selecionar melhor os policiais, treinar melhor, remunerar melhor.

Ibase - Há comentários de que jovens se identificaram com policiais do Bope, como heróis. Como vê essa identificação?

José Padilha - Quem é o capitão Nascimento? O capitão Nascimento é apresentado, desde o início, como alguém que investiu na sua carreira, que tortura e mata. E o que está acontecendo com ele no filme? Está percebendo que isso não é possível. E como percebe isso? Pelo fato de não conseguir conciliar sua família com o que faz. Ele é um personagem angustiado, com síndrome de pânico, que está o tempo inteiro querendo sair da Tropa de Elite, esse é o dilema dele. O Nascimento não é um policial que deu certo, pelo contrário, é um policial que deu errado. E isso é muito claro no filme. Então, se identificar com o Nascimento não é se identificar com o Bope: o Nascimento quer sair do Bope.

A pergunta soa estranha para mim. Os adolescentes se identificaram com quem: com o Nascimento ou com o Bope? Porque são coisas diferentes. A identificação que coloca tudo num saco só, "me identifiquei com o Bope e com o Nascimento", é uma identificação de alguém que não consegue ver o filme. E isso eu tenho visto nos jornais, tenho visto na crítica.

Acho, por outro lado, que uma parte da crítica atirou rápido na platéia: "tá tudo certo com o filme, a platéia é que é fascista". Isso é absurdo. Acho que fascista é quem julga a platéia assim, com velocidade. Se daqui a três meses a platéia manifestar identificação com o Bope, vou ficar preocupado. Vou achar que o filme está medindo alguma coisa ruim na nossa sociedade. Isso não tem nada a ver com o filme, tem a ver com a platéia.

Vou ficar preocupado, como fiquei preocupado quando, na última cena de "Ônibus 174", a multidão, quando houve o tiroteio, não correu para se proteger, mas correu para cima do tiroteio, para linchar o Sandro. É uma sensação de sentimento da população que é preocupante. Porém, não vem do vazio. Se a população está se sentindo assim é porque existem fatos que a levam a se sentir dessa forma.

Ibase - O filme foi comercializado de forma ilegal. Quais prejuízos trouxe?

José Padilha - O primeiro prejuízo para mim foi o fato de ter sido exibido de forma inacabada. Não estava pronto. É como se um escritor tivesse o rascunho do seu livro copiado e publicado. Por outro lado, tem um enorme prejuízo que diz respeito à venda de DVD's. Agora, vamos ver o que ocorrerá com o público dos cinemas, ainda não dá para avaliar.

Algumas pessoas argumentaram que a pirataria não é de todo ruim, que democratiza a cultura. O argumento não leva em conta o fato de ter havido comercialização ilegal, que envolve sonegação fiscal, que envolve violação dos direitos trabalhistas, afinal, os funcionários dessas "biroscas" não têm direitos trabalhistas reconhecidos por seus chefes. Envolve concorrência desleal. Como um empresário que paga seus impostos em dia, que vende DVD's, que reconhece os direitos de seus funcionários vai competir com um cara que não faz isso?

Publicado em 5/10/2007.

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